a mão e o peão.

Thursday, August 31, 2006

número 7

que se foda a lógica
e a racionalização dos ímpetos.
que se foda a concordância
e a verosimilhança.
que se foda o concretizável
e o método experimental.
que se foda a causa-efeito.
que se foda a plausibilidade
e o normal.
que se foda tudo o que os outros esperam de mim.

tributo.

poeta algum me fala aos sentidos e, consequentemente, às sensações, como Sophia de Mello Breyner Andresen. no dia da sua morte, 2 de julho de 2004, escrevi-lhe.

espero-te junto ao mar
testemunharei quando vieres
o cumprimento e a existência
dos instantes que não viveste

nos meus dias de tristeza
de uma tristeza que melhor dor seria
nos meus dias de tédio
de morte e Incertezas
(assim com maiúscula e tudo)
de luta desesperada e auto-alimentada

sairei de casa
do meu quartinho banal
de plebe

para ir-te ver
numa praia qualquer
num qualquer inverno brando
encontrando os segundos os mundos
que não viveste junto ao mar

encontrando as conchinhas
os restos de medusas e anémonas histriónicas
que
quando viva
não admiraste vivas
estiradas nos espaços.

assim
nua e sozinha
perdida e achada
só num ar aberto numa fenda imensa de luz funda
depositada na areia
a água do mar lambendo os teus pés
como uma pedra

e eu vou ver-te
escondido numa duna
e depois vou escrever-te
numa casa nocturna onde todas as crianças dormem
como as tuas.

interrogatório, farmácia, foda.

acto I: o interrogatório

«marianne.»
(pausa)
«chamá-la-ei marianne.»
uma voz: e se for um rapaz?
«marianne...»
e se for um rapaz?
«johan; gosto de nomes estrangeiros, têm uma força especial.»
«a senhora
(detesto que me chamem senhora! já a puta da farmacêutica me chamara senhora, com um tom de voz «eu ainda tenho a vida toda pela frente»)
tem noção da infracção gravíssima que cometeu e ainda comete neste preciso momento?»
«tenho um amor dentro de mim.»
«não seja ridícula! lirismos não a safarão. a concepção e gestação de uma criança por conta própria é proibida no nosso Estado e punível com a pena máxima. o acatamento tem sido exemplar: nem uma infracção, nem uma concepção! o sexo foi banido, em prol de um bem comum: o acesso de todos aos recursos, cada vez mais escassos. a senhora
(caralho, começo a fartar-me! ainda por cima, estou com náuseas)
conhece com certeza a situação, terei mesmo de explicar-lhe tudo isto? a concepção e gestação só são permitidas na Área 4L, e para evitar a extinção da raça. tudo controlado, tudo assessorado, provocado e estudado. estatisticamente, o número máximo de crianças que concebemos por ano para que os recursos mantenham a estabilidade é de 1300, considerando a mortalidade média. nem mais, nem menos. a senhora não está autorizada a procriar.»
«não me chame de senhora, seu cabrão robotizado.»
«responda às perguntas que fazemos, ordeiramente, e poderá interromper a infracção sem punição. não queremos escândalos, não queremos que o exemplo frutifique.»
«não o farei. é o meu corpo, o meu útero, a minha carne e o meu sangue que alimentam esta criança.»
«recusa-se a cooperar.»
«minha senhora, não tem alternativa. ou o fará cooperativamente, beneficiando da excepção que admitimos fazer, ou contra-vontade, e aí, e para impedir que repita o infortúnio, tomaremos medidas mais definitivas.»
«ouça. não sei como se chama. não lhe peço clemência. ou melhor, peço.
(que se foda o orgulho. o orgulho não nos leva a lado algum)
peço misericórdia. por mim e por esta vida que se afirma no meu ventre. eu quero tê-la e vê-la beber o leite das minhas mamas. mesmo que doa. mesmo que arrepie os meus mamilos até sangrar. quero sentir a vagina a rasgar-se para a cuspir. quero ver o seu corpinho balofo, brilhante do meu líquido amniótico e cheirando ao meu sangue. quero espremer o cordão umbilical nas minhas mãos. quero ouvi-lo chorar. quero ouvi-lo rir. quero pegar-lhe numa mãozinha e antecipar o futuro que sei que não vai ter. quero sentir o ciclo da minha vida: morte nascimento morte nascimento, ser parida parir ser parida parir. assim. não é por ele, é por mim. é um acto total e desesperadamente egoísta, como qualquer amor. é o meu prazer em lhe dar a vida, seguramente, como quem passa um vela de mão em mão....

não sou ingénua, sei que me matarão, quer coopere ou não. que me enterrarão numa floresta fria, sem direito a uma lápide que diga «eterna saudade da sua filha marianne», ou «eterna saudade do seu filho johan». mas... troquem a minha vida pela dele. mantêm a merda dos recursos e a vida do meu filho. a vida dele pela minha, é uma boa troca, é uma troca justa. é uma troca... por favor.»

acto II: a farmácia

e depois fui à farmácia e disse
«dê-me um teste de gravidez, por favor.»
assim, seca, sem hesitações e ligeiramente agastada, como se pedisse uma aspirina para uma enxaqueca irritante.
e a senhora da farmácia, sem nenhum olhar que traísse os seus pensamentos, foi lá dentro buscar e depois voltou e disse
«é um Predictor.»
(penso «curioso: Predictor!»)
« senhora
(a senhora?! quem é a que a puta pensa que é? uma colegial, não?)
urina para esta ponta, tapa com a tampinha e aguarda cerca de 4 minutos.
(4 minutos. quanto tempo demorará o espermatozóide a fundir-se com o óvulo?)
se, ao destapar, passados os 4 minutos, a ponta estiver cor-de-rosa, é porque detectou, na sua urina, a hormona gonadotrópica coriónica e
(e isto disse-o pausadamente, e numa voz desagradavelmente melíflua)
indica que está de esperanças.»
achei a expressão um tanto ridícula e soltei um «obrigado» para o disfarçar. paguei.
saí e vi-me sozinha na rua. gente que passa, carros que passam, o vento que assobia, ao passar. esquerda direita esquerda direita esquerda direita. o mundo aborrece-me. e entontece-me um pouco, também. são muitos estímulos para processar e eu tenho uma única coisa em mente.

acto III: a foda

a seguir, estava deitada no chão da cozinha, com um homem compacto em cima de mim.
«estás a suar para cima de mim.»
as pingas do seu suor desprendiam-se da sua pele e caíam-me na cara. caíam-me nos olhos e ardiam-me. caíam-me na boca e ardiam-me a língua. ele resfolegava e suava. penetrava-me com fúria e com pressa, como se estivesse a partir pratos de propósito. depois de algum tempo, deixei de me importar. passei a gostar. lambia o seu suor dos meus lábios, arranhava-lhe o rabo com as unhas, gemia alto e gritava
«fode-me! isso! mais! isso! rasga-me toda!»
com estas palavras, que são isso mesmo: palavras e, portanto, totalmente desprovidas de significado.
«gostas, não gostas? nunca apanhaste com um tão grande, pois não?»
respondia, deleitada, que não, embora o seu pénis fosse, relativamente, pequeno. ele ficava feliz. eu gritava e ele tapava-me a boca. mordia-lhe a carne do polegar e lambia a pele que liga os seus dedos. uma puta reles e ordinária, que só pensava em foder. o meu peito, sentia-o como um depósito de água: o coração, os pulmões, o esterno, liquefeitos, a chocalharem, embatendo na minha pele. é assim que o desejo me deixa: líquida e quente.
«viemo-nos ao mesmo tempo.»
o orgasmo é um momento. curto e, por isso, tão bom. durante um orgasmo cegamos, ensurdecemos, perdemos o tacto e a lucidez. ficamos herméticos e somos só corpo e electricidade. rápido a pila se lhe murchou e ele se deitou de ilharga. fechou os olhos. murmurou um
«estou com sono.»
liguei a televisão e fiquei a olhar sem ver. pensava onde estaria o seu esperma agora; uma parte tinha já escorrido da minha vagina, mas eu esperava que algum chegasse ao seu destino milenar. não amava aquele homem (aliás, tinha acabado de conhecê-lo
olá, estás bom? eu sou a fulana, e tu, vives onde, o que é que fazes - já nem lembro - queres vir a minha casa? despe-te, ajoelha-te, e o resto.)
nem a foda fora nada de especial, mas o meu corpo ansiava por gerar. nunca mais veria aquele homem. não lhe pediria pensões, só que se afastasse, o que me parecia que ele faria de bom grado, não me constou que tivesse planos de família. um dia, a minha filha perguntaria quem lhe tinha dado a vida e eu diria
«eu e um estranho.»
ela remataria, cinematográfica
«sempre dependi da bondade dos estranhos.»
enquanto acaricio a barriga, uma gaja estúpida sorri na TV.

o alquimista

nas ruas ermas
os chãos de laje fumegam, como a pele de uma
galinha escaldada.
por entre os fiapos de neblina,
um homem equilibra-se na obliquidade das arestas.
as paredes das casas atiram-se do alto
e as janelas são órbitas sem globos, ocas e agrestes.
vida, se a há,
escoou-se para dentro como lesmas retraídas
no mais fundo das suas conchas espiraladas. as suas peles ácidas.
os candeeiros da rua são balões de uma luz difusa
que vai lambendo devagar as pedras e os corpos.
esta cidade de vielas,
sitiada entre campos sem fim nem dono,
crestada ao som dos dias parados
como pratos sujos e frios,
enruga em cada esquina o peso das horas
e é velha e cheia de medo.
nas mãos do alquimista,
uma promessa de solidez,
uma fórmula de as coisas serem as coisas
e estarem onde estão. não este abandono transparente de fissuras,
não esta secura, este estalar de fibras.
nas mãos e nos bolsos do alquimista,
um regato e um olhar vivo.

número 3

nunca se vira um dia assim. intermitentemente, chovia. O céu, em simultâneo, oprimia e dava uma sensação de possibilidade premente. o gris não cedia, não havia espaços em que o sol se intrometesse, ou nuvens mais brancas que aligeirassem o horizonte. só aquela cúpula, aquele tecto compacto, qual manta que se abatera, em ensejo de protecção. não fazia calor, nem frio. o vento não silvava, como de costume, pelas arestas das casas: naquela agonia dos dias tristes, fininha e sibilina. antes, soava o tempo como se tivesse parado. as pessoas olhavam-se e cumprimentavam-se como se perdidas se achassem, meio parvas, embatucadas. o tempo não fazia tema de conversa escapatória ao embaraço de nada se encontrar que dizer: era, ele próprio, o único tema que interessava, que ocupava as preocupações dos indivíduos. mas dele nada se dizia. as folhas das árvores dançavam tranquilas, à brisa suave que corria. de escárnio, balançavam mais um pouco, depois de a brisa parar. a inquietação crescia, os animais enervavam-se, ladravam ou miavam ou mugiam, conforme aos seus repertórios habituais, de maneira inconstante, sem fúria ou medo, mas com apreensão, e os seus pios e balidos, aziagos. pairava uma sensação de incerteza. aos olhos de um forasteiro, pareceria que os corpos nervosos em agitação e aquela atmosfera de cúpula pressagiavam uma desgraça iminente ou então que havia chegado o dia em que todos os homens, entre os 14 e os 70 anos, haviam sido chamados à guerra. que a aldeia se esvaziaria, dentro em pouco. se tornaria balofa, como um saco de plástico amarrotado. à medida que as horas corriam, e nada acontecia, a inquietação aumentava, no desejo de que algo realmente mau acontecesse, para que a angústia de esperar desse lugar à dor de sentir. no entanto, a ameaça conteve-se. não sabemos se foi um aviso ou um simples acaso meteorológico com consequências inesperadas. o dia acabaria sem notícias de maior, esvaindo-se em fiapos de luz cinzenta e rota.

pergunto-te porquê.

não tenho qualquer pejo em alterar o que quer que tenha escrito. bem sei que o meu estilo literário (e todos os outros) haverá sempre de mudar mas, em qualquer altura que leia algo que escrevera, risco e reescrevo, nervosamente, tudo o que me não agradar. este texto, no entanto, está intacto. coibi-me de lhe tocar, muito embora já não me reveja em muitas das suas passagens. creio, no entanto, que ele merece uma oportunidade de ser lido. foi levado à cena (adoro esta expressão) em 2004, na peça "Com carácter de urgência" pelo Ultimacto - grupo de teatro da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da UL. aqui está:

"pergunto-te porquê.
pergunto-te o porquê, os tantos porquês que nem um valium dos fortes doma, à noite, noitinha, quando me deito. para começar.

onde ias tu, com tanta pressa, desajeitado, como sempre, naquela quinta-feira, antes do primeiro de novembro? paravas sempre à minha janela, batias uma, duas vezes, e quando eu afastava os cortinados, que sorriso, meu deus... davas-me um beijo, não, dois! um na boca, demorado, saboroso, e outro na testa, como sempre fazias, em sinal de respeito, dizias... tinhas-me muito respeito... lembro-me como me tinha de debruçar para fora da janela para que cumprisses o teu ritual. divertia-me, apesar de tudo, essa devoção tão extremada!
mas, responde-me. onde ias tu? não que estivesse atento ao movimento na rua, à espera que passasses, não! simplesmente reparei, deitado na cama, naquela tua camisola, laranja garrida! ninguém mais poderia usar semelhante coisa! disse-te vezes sem conta que a deitasses fora, que a doasses aos pobres, sei lá! que te desfizesses dela, que era horrível... em vão, é óbvio! não desistias tão facilmente das tuas escolhas, tão teimoso que eras!afastei discretamente os cortinados para que me não visses, não queria que pensasses que te espiava... a janela embaciou-se com a minha respiração, desta vez não a abri, não me deste um beijo... ias com tanta pressa! atravessaste a estrada sem olhar para os lados, aliás, como sempre fazias, por mais que eu te rogasse atenção! desta vez tiveste sorte, não vinha nenhum carro! mas quantas, quantas vezes ias sendo abalroado! nessas alturas saía-me das entranhas um grito tão profundo, gutural, que depois se esbatia numa raiva, naquela raiva... sentia a garganta tão apertada! tu rias-te, gozavas com a minha exasperação, como se fingisses não saber que eras os meus alicerces! as pessoas olhavam muito para nós, eu, vermelho, quase espumando de aflição e tu, rindo-te que nem um perdido... era assim: eu espantava os medos vociferando, tu rias-te. será que ainda és assim?
mas diz. diz lá, onde ias naquela quinta, apressado, orgulhosa e teimosamente envergando aquela camisola laranja intragável, à qual tinhas tanto amor?
uma constante em ti era amar e querer tudo o que os outros (chamavas-lhes, com desdém, os normaizinhos...) repudiavam! aconteceu o mesmo com aquela cadela preta, cega e surda que encontraste, um dia, no Guincho, suja e sozinha. Por mais ultimatos que a tua mãe cuspisse, esganiçada, não abrias mão dela... acho que se tornou o símbolo vivo da tua compaixão. tinhas-lhe um amor tão puro que às vezes, em segredo e afastando logo, logo esse pensamento, desconfiava se gostavas mais dela se de mim! davas-lhe à boca, todos os dias, com um biberão, leite; deixava-la dormir contigo, embora ela se coçasse incessantemente de cada vez que vinha de um dos seus passeios pelas redondezas, passeios esses intermináveis, às vezes durante a noite, noitinha... pois deixa-me que te diga. eu também amava muito aquela cadela, mais que não seja porque cada vez que ela mostrava um breve e tímido sinal de contentamento te abraçavas a mim e me beijavas com força. e de seguida atiravas-me com volúpia um amo-te pleno de realização!
nunca cheguei a fazer uma deplorável cena de ciúmes, daquelas que se vêem nos filmes. não porque não o quisesse mas porque a minha racionalidade me agrilhoava o comportamento. não, isso não é normal, agora fazer uma cena de ciúmes por causa duma cadela! o seu nome era princesa. morreu.
fizeste-lhe um funeral digno de um membro da realeza, repleto de coroas de flores, chamaste todos os teus amigos (que são tantos, meu deus!), a tua família... choraste tanto, amor. e eu! nunca pensei que sentiria tanto a falta da princesa. estranhamente, por vezes, quando dormia contigo, lembrava-me de como ela se intrometia no meio de nós, privando-me do teu calor, da tua pele. odiava que ela me lambesse de manhã, quando acordava! pois até disso tive saudades.
morreu e com ela a prova viva da tua bondade! vacilaste um pouco, sim que eu bem me lembro de como andaste confuso uns tempos, parecia que cambaleavas. embrenhaste-te, então, num projecto de acção social que havia na tua faculdade. sumias noites inteiras para ir dar de comer aos sem-abrigo. eu apreciava esse teu lado humanista, mas de vez em quando almadiçoava-te! desculpa-me, amor. porque fugias para dar de comer aos sem-abrigo? não vias que era eu também um sem-abrigo? precisava de comer, de comer-te e tu fugias. rapidamente a minha racionalidade vinha e carimbava uma sonora censura nestes meus pensamentos desviantes. e quando regressavas e perguntavas se estava magoado, triste, esboçava sempre uma expressão de espanto e balbuciava um politicamente correcto claro que não!
e tu ficavas muito feliz pois eras amado por alguém que sabia e aceitava a tua missão neste mundo! pois é, amor. afinal, eu também sou um normalzinho.
também me queria queixar e queria chorar e babar frases que te fizessem sentir culpado, em falta. mas o meu amor por ti era demasiado forte. ou demasiado fraco, não sei.
sei que um dia de verão, há algum tempo, um dia resplandecente e preguiçoso, me disseste que não me amavas mais, que sentias que não me merecias e que era melhor separarmo-nos. e nesse dia tão claro, tão farto de borboletas e plantinhas e chilreares, nesse 3 de agosto obscuro, algo em mim sucumbiu à força devastadora desse não te amo mais. um dia mais tarde descobri que o que em mim tinha morrido havia sido a racionalidade.
onde ias tu? sim, onde ias?
ouvi dizer que tinhas acabado o teu curso, que estavas a trabalhar numa escola em Lisboa, que ganhavas bem... em meios pequenos só não se sabe o que não se quer saber! custa-me ver que reconstruíste a tua vida, que botaste novos alicerces nas ruínas dos que haviam esmorecido. não foi assim tão fácil comigo. não, não foi.
as ruínas dos meus alicerces eram demasiado espaçosas, demasiado presentes, vigentes. mesmo depois de todo este tempo (três, quatro anos? não sei) continuo vivendo desprotegido, sem paredes que me suportem, que me bloqueiem o vento frio.

de vez em quando sonho, ou penso não sei, como, às vezes, me costumavas receber nu, no teu quarto. punhas um incenso de maresia (o meu preferido) a arder, no canto, em cima da mesa de cabeceira. tinhas a cama feita apenas com um lençol em cima do colchão, como sabias que eu gostava. pegavas em mim ao colo, como se fosse a nossa lua-de-mel. nunca chegámos a tê-la. fazíamos amor como crianças, de uma maneira tão inocente. demorávamos horas explorando o corpo um do outro, que já conhecíamos ao mais ínfimo pormenor, mas que constituía uma novidade de cada vez que o percorríamos com beijos. adoravas o meu umbigo, os meus ombros, o meu pescoço. por mais que eu te implorasse que não me beijasses o pescoço não desistias. sabias que me arrepiava solenemente mas eras teimoso. eu passava momentos intermináveis olhando e beijando o teu peito, a tua barriga, até que não aguentavas mais e te rias. como eu gostava de ouvir o teu riso. não sei porquê fazia-me sempre lembrar a água, um rio, daqueles pequeninos, correndo lesto sobre os seixos. pegavas em mim, sentavas-me em cima de ti, virado para ti, entrelaçados. e penetravas-me, tão suavemente. nunca conheci ninguém tão calmo a fazer amor. parecia que desfrutavas cada centímetro de pele que o teu pénis tocava, dentro de mim. pelo menos eu tinha essa pretensão. às vezes esquecia-me do meu próprio deleite e entretinha-me mirando os teus dedos dos pés, que se contorciam com força de cada vez que tinhas um pico de prazer. a tua pele eriçava-se tanto, apetecia-me morder-te e arrancar-te um bocado. tão bom que era teres-me nos teus braços e dar-te prazer.
e depois. passadas algumas horas, que segundos pareciam, o orgasmo. deliravas quando eu fazia o sacrifício (era assim que pensavas. se soubesses que gostava tanto disso como tu!) de beber o teu esperma! o teu sorriso era tão amplo, tão alvo! chamavas-me o teu perfeito, o teu lindinho, o teu e só teu amor. meu deus, como eu me sentia!
o incenso já ardeu todo. dormimos agora, eu, de costas voltadas para ti, encaixados, como duas peças de puzzle. antes de adormecermos davas-me sempre um beijo nas costas e sussurravas és meu. e eu era teu. ainda sou.

é de noite no meu quarto. as sombras, recortadas na parede branca, passam fugidias na escassez do teu toque. estou só, deitado na cama, olhando para o tecto, com as mãos em cima do peito, como um morto. eu estou morto. resgatam-me para a vida, uma vez por outra, os corpos vazios que me possuem, com uma rapidez estonteante. nojenta. não penses que te traio, amor, de cada vez que fodo alguém. não, o meu pensamento está sempre, constantemente em ti, na tua pele e nos teus olhos. quando olho para eles, vejo apenas o teu sorriso, a tua pequena cicatriz ao lado do olho esquerdo. não vejo mais nada, nem sinto mais nada. mais correcto seria dizer não vejo nada, nem sinto nada. apenas o vazio sufocante da tua ausência.
e nunca, nunca mesmo, engulo o esperma deles. não! a tua essência está cá dentro e nunca, jamais alguém a amputará de mim.

porque fugiste de mim naquele dia? porque me deixaste, sozinho em mar alto, sem bóia nem garganta para gritar? sinto-me estéril quando penso nesse dia, e nos subsequentes. porque a negritude é a mesma, não atenuou a minha dor nem um bocadinho. tão triste que estou.
perdi os meus amigos, nesta amargura obsessiva. não tenho com quem carpir o sofrimento solitário e as lágrimas secas. depois de muito gritarem comigo e me blasfemarem, deixaram-me, entregue à minha sina. inevitável, creio eu; eles dizem que eu escolhi!! achas bem amor? eu não escolhi! porque me disseste aquele não te amo mais? porque não fingiste e me deixaste ser feliz? eu merecia. e tu puxaste-me o tapete. cobardemente. egocêntrico. com essa tara da acção social, e de seres bom para os outros, e da merda da missão que tinhas na terra e da puta da magnificência, acabaste por matar aquele que mais te queria bem, o teu mais devoto ser! sim, que carinho, que recompensa te davam aqueles esquálidos sem-abrigo a quem davas comida, por quem passavas noites sem dormir? eu, que te fazia comida, que te ouvia quando choravas, que tão ternamente te abraçava, que recebi eu? um não te amo mais que me arrancou cada célula do corpo às contíguas e me faz cair no mais profundo dos definhares.

porque me ignoraste? porque nem sequer vieste ver-me à janela, naquela noite abafada, quando gritei bem alto, entre lágrimas sós, o que o meu peito exigia, esse meu peito rasgado em mil pedaços? dormi no átrio do teu prédio, encolhido, engelhado. vieram buscar-me, os amigos que na altura ainda tinha, de manhã. levaram-me de bruços. e toda a gente da rua se condoeu.
gostava de te poder dizer para tomarmos um café, um dia destes. nunca mais falámos, como se não nos conhecêssemos. e, no entanto, como nos conhecemos! falar-me-ias do teu emprego, das crianças, que aposto, adoras!, da tua mãe, que ainda me cumprimenta, com uma ponta insuportável de pena na voz, do teu novo amor... eu não me importava, amor! nem te chamaria de amor, como sempre fazia! seríamos amigos, e eu poderia olhar-te, cheirar uma vez mais a tua pele. não provocaria em ti a mais pequena preocupação, ou aquela execrável pena. eu estou bem agora, estabilizo, a pouco e pouco. e poderia ser o teu ouvinte, ou conselheiro. dir-te-ia o que fazer, nos assuntos do coração, rir-me-ia com a tua alegria e ficaria tão feliz quando amasses e fosses amado! calmamente, em absoluta desintegração interior.

faria tudo por um punhado de palavras tuas. quebrariam elas os meus dias de autómato, em que percorro o caminho de casa ao trabalho, e depois de volta, sem olhar os pássaros que esvoaçam no céu, como fazíamos. sem correr pelo jardim, pelos carreirinhos que contornam o lago, sem contemplar estupefacto a natureza inventiva do mundo. quando me falavas dessas coisas, eu sentia que fazia parte de um mundo tão maravilhoso quanto desconhecido. filosofavas, absorto, e, lá no fundo (sei-o eu), falavas para ti, na inconsciente certeza de que não compreenderia. bastavam-te os meus sorrisos embrutecidos, e o meu carinho, a minha admiração pela tua mente prodigiosa, pelo teu intelecto, que me fazia pensar em coisas tão abstractas. talvez te tenhas fartado desse meu materialismo realista, de responder às tuas questões irrespondíveis com um sorriso e um abraço... seja como for, o meu sorriso, o meu carinho e a minha admiração não bastaram para sempre. eu sabia (quão intimamente!) que precisavas de alguém que te acompanhasse nas tuas aventuras extraterrenas, alguém com uns óculos de massa grossos, cabelo desgrenhado e mãos finas, de pianista. e eu não era assim, e tinha pena de ti por não o ser, por não te poder dar o que merecias, e pena de mim, condolência pela obsidiante consciência de que, um dia, partirias. 3 de agosto.

passaram cinco anos desde aquele 3 de agosto. este que passa, agora, é marcado pelos gritos lancinantes da tua mãe, agarrada a uma amiga, com os joelhos ligeiramente dobrados, como se fosse desfalecer. é marcado por um sol tão mimoso, e tão ignorado na vastidão alva destes leitos. é marcado por um choque terrível na nossa cidadezinha, tão corriqueira. e o que quer que tenha, um dia, sido o nosso amor, átomos ou essências que ainda prevaleçam nos nossos âmagos, descem à terra, comigo e contigo, para sempre."

Wednesday, August 30, 2006

número 1

ora bem. primeira tentativa. contra todas as expectativas e contrariando, até, a extensa especulação que se vinha fazendo nos meios de comunicação social ibéricos quanto à inauguração do meu blog, começarei por partilhar um texto que me é muito caro, mas que não fui eu que escrevi. sim, porque se quero começar bem, quem melhor do que Camus? deliciai-vos com O Mito de Sísifo, em versão dramática ("Ao segundo", 2005):

"A segurança bem humana de duas mãos cheias de terra...

(Porquê?)

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo. Porquê? Tinham pensado, com alguma razão, que não há pior castigo do que o trabalho inútil.

Há todo o esforço de um corpo tenso que se empenha em erguer a enorme pedra, rolá-la até ao cimo. Há um corpo crispado, a face colada à pedra, um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, os braços que de novo a empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra.

(Porquê?)

E há os gestos. Gestos de levantar, apanhar o eléctrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, o eléctrico, refeição, quatro horas de trabalho, duas mãos cheias de terra, o eléctrico, (porquê?) refeição, sono, e levantar, apanhar o eléctrico, segunda feira, terça feira, dia11, quarta feira, Fevereiro, quinta feira, (o meu campo - diz Goethe - é o tempo), dia 20, sexta feira, segunda feira, levantar, refeição, 1998, 1999, sábado, Março de 2002, dia 6, fábrica, o eléctrico, esta estrada segue-se com facilidade a maior parte do tempo. Ganhamos o hábito de viver antes de adquirirmos o de pensar. E depois vem o espanto.

Em relação a todos os dias de uma vida sem lustro o tempo carrega connosco. Mas chega sempre um momento em que somos nós a ter de carregá-lo.

No termo do longo esforço de Sísifo, montanha acima, um esforço medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, Sísifo vê então a pedra a resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior e desce de novo à planície. É neste regresso que Sísifo interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras é já ele próprio pedra! Vemos esse homem descer outra vez com um andar pesado mas igual. Essa hora, que é como uma respiração, essa hora é a da consciência. Há esta corrida, que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte. Há um corpo que guarda esse avanço irreparável. Há que parar. Há que recomeçar.

(- Porquê?)

É até cómodo ser-se lógico, mas é quase impossível ser-se lógico até ao fim. O sentimento do absurdo pode esbofetear qualquer homem à esquina de qualquer rua, e

tudo está bem.

A descida faz-se uns dias na dor

(Parar, estranhar, pensar, sorrir e recomeçar).

E faz-se uns dias na alegria.

Virá algum insulto à existência, o facto de ela não ter sentido nenhum?

(Tudo está bem)

Em cada um desses instantes em que decide recomeçar, Sísifo ganha o seu destino, é mais forte que o seu rochedo. O seu destino pertence-lhe, o seu rochedo é a sua coisa.

É até cómodo ser-se lógico...

(- porquê?)

Persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O seu rochedo rola e

“tudo está bem”.

Esse universo sem deus nem dono não lhe parece estéril. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo, e

“tudo está bem!” O seu rochedo é a sua coisa.

A própria luta basta.

É preciso imaginar Sísifo feliz."