a mão e o peão.

Thursday, August 31, 2006

número 3

nunca se vira um dia assim. intermitentemente, chovia. O céu, em simultâneo, oprimia e dava uma sensação de possibilidade premente. o gris não cedia, não havia espaços em que o sol se intrometesse, ou nuvens mais brancas que aligeirassem o horizonte. só aquela cúpula, aquele tecto compacto, qual manta que se abatera, em ensejo de protecção. não fazia calor, nem frio. o vento não silvava, como de costume, pelas arestas das casas: naquela agonia dos dias tristes, fininha e sibilina. antes, soava o tempo como se tivesse parado. as pessoas olhavam-se e cumprimentavam-se como se perdidas se achassem, meio parvas, embatucadas. o tempo não fazia tema de conversa escapatória ao embaraço de nada se encontrar que dizer: era, ele próprio, o único tema que interessava, que ocupava as preocupações dos indivíduos. mas dele nada se dizia. as folhas das árvores dançavam tranquilas, à brisa suave que corria. de escárnio, balançavam mais um pouco, depois de a brisa parar. a inquietação crescia, os animais enervavam-se, ladravam ou miavam ou mugiam, conforme aos seus repertórios habituais, de maneira inconstante, sem fúria ou medo, mas com apreensão, e os seus pios e balidos, aziagos. pairava uma sensação de incerteza. aos olhos de um forasteiro, pareceria que os corpos nervosos em agitação e aquela atmosfera de cúpula pressagiavam uma desgraça iminente ou então que havia chegado o dia em que todos os homens, entre os 14 e os 70 anos, haviam sido chamados à guerra. que a aldeia se esvaziaria, dentro em pouco. se tornaria balofa, como um saco de plástico amarrotado. à medida que as horas corriam, e nada acontecia, a inquietação aumentava, no desejo de que algo realmente mau acontecesse, para que a angústia de esperar desse lugar à dor de sentir. no entanto, a ameaça conteve-se. não sabemos se foi um aviso ou um simples acaso meteorológico com consequências inesperadas. o dia acabaria sem notícias de maior, esvaindo-se em fiapos de luz cinzenta e rota.

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