interrogatório, farmácia, foda.
acto I: o interrogatório
«marianne.»
(pausa)
«chamá-la-ei marianne.»
uma voz: e se for um rapaz?
«marianne...»
e se for um rapaz?
«johan; gosto de nomes estrangeiros, têm uma força especial.»
«a senhora
(detesto que me chamem senhora! já a puta da farmacêutica me chamara senhora, com um tom de voz «eu ainda tenho a vida toda pela frente»)
tem noção da infracção gravíssima que cometeu e ainda comete neste preciso momento?»
«tenho um amor dentro de mim.»
«não seja ridícula! lirismos não a safarão. a concepção e gestação de uma criança por conta própria é proibida no nosso Estado e punível com a pena máxima. o acatamento tem sido exemplar: nem uma infracção, nem uma concepção! o sexo foi banido, em prol de um bem comum: o acesso de todos aos recursos, cada vez mais escassos. a senhora
(caralho, começo a fartar-me! ainda por cima, estou com náuseas)
conhece com certeza a situação, terei mesmo de explicar-lhe tudo isto? a concepção e gestação só são permitidas na Área 4L, e para evitar a extinção da raça. tudo controlado, tudo assessorado, provocado e estudado. estatisticamente, o número máximo de crianças que concebemos por ano para que os recursos mantenham a estabilidade é de 1300, considerando a mortalidade média. nem mais, nem menos. a senhora não está autorizada a procriar.»
«não me chame de senhora, seu cabrão robotizado.»
«responda às perguntas que fazemos, ordeiramente, e poderá interromper a infracção sem punição. não queremos escândalos, não queremos que o exemplo frutifique.»
«não o farei. é o meu corpo, o meu útero, a minha carne e o meu sangue que alimentam esta criança.»
«recusa-se a cooperar.»
«minha senhora, não tem alternativa. ou o fará cooperativamente, beneficiando da excepção que admitimos fazer, ou contra-vontade, e aí, e para impedir que repita o infortúnio, tomaremos medidas mais definitivas.»
«ouça. não sei como se chama. não lhe peço clemência. ou melhor, peço.
(que se foda o orgulho. o orgulho não nos leva a lado algum)
peço misericórdia. por mim e por esta vida que se afirma no meu ventre. eu quero tê-la e vê-la beber o leite das minhas mamas. mesmo que doa. mesmo que arrepie os meus mamilos até sangrar. quero sentir a vagina a rasgar-se para a cuspir. quero ver o seu corpinho balofo, brilhante do meu líquido amniótico e cheirando ao meu sangue. quero espremer o cordão umbilical nas minhas mãos. quero ouvi-lo chorar. quero ouvi-lo rir. quero pegar-lhe numa mãozinha e antecipar o futuro que sei que não vai ter. quero sentir o ciclo da minha vida: morte nascimento morte nascimento, ser parida parir ser parida parir. assim. não é por ele, é por mim. é um acto total e desesperadamente egoísta, como qualquer amor. é o meu prazer em lhe dar a vida, seguramente, como quem passa um vela de mão em mão....
não sou ingénua, sei que me matarão, quer coopere ou não. que me enterrarão numa floresta fria, sem direito a uma lápide que diga «eterna saudade da sua filha marianne», ou «eterna saudade do seu filho johan». mas... troquem a minha vida pela dele. mantêm a merda dos recursos e a vida do meu filho. a vida dele pela minha, é uma boa troca, é uma troca justa. é uma troca... por favor.»
acto II: a farmácia
e depois fui à farmácia e disse
«dê-me um teste de gravidez, por favor.»
assim, seca, sem hesitações e ligeiramente agastada, como se pedisse uma aspirina para uma enxaqueca irritante.
e a senhora da farmácia, sem nenhum olhar que traísse os seus pensamentos, foi lá dentro buscar e depois voltou e disse
«é um Predictor.»
(penso «curioso: Predictor!»)
« senhora
(a senhora?! quem é a que a puta pensa que é? uma colegial, não?)
urina para esta ponta, tapa com a tampinha e aguarda cerca de 4 minutos.
(4 minutos. quanto tempo demorará o espermatozóide a fundir-se com o óvulo?)
se, ao destapar, passados os 4 minutos, a ponta estiver cor-de-rosa, é porque detectou, na sua urina, a hormona gonadotrópica coriónica e
(e isto disse-o pausadamente, e numa voz desagradavelmente melíflua)
indica que está de esperanças.»
achei a expressão um tanto ridícula e soltei um «obrigado» para o disfarçar. paguei.
saí e vi-me sozinha na rua. gente que passa, carros que passam, o vento que assobia, ao passar. esquerda direita esquerda direita esquerda direita. o mundo aborrece-me. e entontece-me um pouco, também. são muitos estímulos para processar e eu tenho uma única coisa em mente.
acto III: a foda
a seguir, estava deitada no chão da cozinha, com um homem compacto em cima de mim.
«estás a suar para cima de mim.»
as pingas do seu suor desprendiam-se da sua pele e caíam-me na cara. caíam-me nos olhos e ardiam-me. caíam-me na boca e ardiam-me a língua. ele resfolegava e suava. penetrava-me com fúria e com pressa, como se estivesse a partir pratos de propósito. depois de algum tempo, deixei de me importar. passei a gostar. lambia o seu suor dos meus lábios, arranhava-lhe o rabo com as unhas, gemia alto e gritava
«fode-me! isso! mais! isso! rasga-me toda!»
com estas palavras, que são isso mesmo: palavras e, portanto, totalmente desprovidas de significado.
«gostas, não gostas? nunca apanhaste com um tão grande, pois não?»
respondia, deleitada, que não, embora o seu pénis fosse, relativamente, pequeno. ele ficava feliz. eu gritava e ele tapava-me a boca. mordia-lhe a carne do polegar e lambia a pele que liga os seus dedos. uma puta reles e ordinária, que só pensava em foder. o meu peito, sentia-o como um depósito de água: o coração, os pulmões, o esterno, liquefeitos, a chocalharem, embatendo na minha pele. é assim que o desejo me deixa: líquida e quente.
«viemo-nos ao mesmo tempo.»
o orgasmo é um momento. curto e, por isso, tão bom. durante um orgasmo cegamos, ensurdecemos, perdemos o tacto e a lucidez. ficamos herméticos e somos só corpo e electricidade. rápido a pila se lhe murchou e ele se deitou de ilharga. fechou os olhos. murmurou um
«estou com sono.»
liguei a televisão e fiquei a olhar sem ver. pensava onde estaria o seu esperma agora; uma parte tinha já escorrido da minha vagina, mas eu esperava que algum chegasse ao seu destino milenar. não amava aquele homem (aliás, tinha acabado de conhecê-lo
olá, estás bom? eu sou a fulana, e tu, vives onde, o que é que fazes - já nem lembro - queres vir a minha casa? despe-te, ajoelha-te, e o resto.)
nem a foda fora nada de especial, mas o meu corpo ansiava por gerar. nunca mais veria aquele homem. não lhe pediria pensões, só que se afastasse, o que me parecia que ele faria de bom grado, não me constou que tivesse planos de família. um dia, a minha filha perguntaria quem lhe tinha dado a vida e eu diria
«eu e um estranho.»
ela remataria, cinematográfica
«sempre dependi da bondade dos estranhos.»
enquanto acaricio a barriga, uma gaja estúpida sorri na TV.
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