a mão e o peão.

Wednesday, November 05, 2008

#8

A noite fervilha em cada espaço escondido, como se as pedras tivessem comichão. Faz calor e, não fosse a escuridão, dir-se-ia que o dia se preparava para nascer: o mesmo vento, esporádico e compacto, o mesmo calor a amassar os corpos, nos intervalos amainados, a mesma sensação de possibilidade trespassante que o começar de um dia traz. Mas ninguém nas ruas. Ouvem-se os fiapos de conversas que atravessam as paredes das casas, risos entrecortados, um ou outro insulto perde-se na noite, escoando pelas arestas, pelos esgotos. Uma densidade qualquer, como uma nuvem, sustém as pessoas e as relações entre elas, como se todas aquelas fossem naturais dum país que venceu uma guerra, como se algo as juntasse em celebração, em desejo ou combate. No entanto, nada há que a justifique; todos nesta cidade estão unidos, comovem-se com um sorriso do vizinho que nunca fala, com a simpatia do motorista do autocarro, «bom dia, como está?, hoje o trânsito está um caos, isto vai tardar…». Um sentimento de pertença, de comunhão infiltrou-se nestes cidadãos mas ninguém fala disso, receosos que seja um seu delírio, ou de que se dissipe.
Aquele homem que vai na rua, agora, sozinho, vai sorrindo, toca nas paredes das casas, ouve um chamamento, uma pergunta casual, ouve a resposta, avança mais um pouco. Noutra casa, o pivot comenta a situação nos Balcãs, ouve-se uma respiração mais funda, quem quer que esteja em frente à televisão não está, de todo, interessado na situação dos Balcãs. Os seus sapatos pretos raspam o chão e ele parte. Vê um miúdo à janela, nos seus dezasseis anos. Não chora nem ri, tem o olhar preso em algo que ultrapassa o seu campo de visão, acima dos telhados. Nem a janela está aberta, o rapaz de camisola vermelha olha através do vidro o que quer que seja, lá longe. O homem da rua encosta-se à parede e cai, sentado. Para trás do rapaz não se vê nada, tem a luz do quarto desligada. Isto se estiver no quarto, pode muito bem estar na cozinha, ou na sala. Pelas cortinas, apostaria no quarto, são amarelas. Embora fosse perfeitamente possível uma cozinha com cortinados amarelos, o homem assume que o rapaz está no quarto, parece-lhe bem mais lógico que uma pessoa perca assim o olhar na noite pela janela do quarto. Nem pensa mais nisso. O miúdo não se mexeu um centímetro, desde que está a ser observado. A camisola vermelha continua a revelar uma barriga um pouco maior que a desejada, a barba continua de três dias, os olhos continuam os de um miúdo, abertos e sedentos. Dezoito, dezanove anos, reformula o homem. O rapaz curva-se. Apoia os antebraços no parapeito, da parte de dentro. Encosta a cara à janela, o vidro embacia-se, curioso como não desviou o foco de atenção nem um pouco, o que ele estava a ver continua no mesmo sítio, só lhe doíam as costas de estar em pé há mais de meia hora. Os restos de conversas da vizinhança continuam a dançar pela escuridão, pelos quadrados de luz recortados nela, num deles as cores alternam-se freneticamente, consoante se informa o tempo que fará amanhã ou o incumprimento do protocolo de Kioto por algum país menos escrupuloso. O vento continua a soprar, quase que assobia ao esquivar-se pelo espaço entre a parede e o cóccix do homem sentado. O rapaz abre a janela, enrosca os braços um no outro, semicerra os olhos contra o vento, lambe os lábios. Curva-se ainda mais sobre o parapeito, mas a cabeça mantém-na erguida, em jeito de desafio, arriscar-se-ia. Ao homem surge, de repente e irreprimivelmente, a ideia de chegar-lhe por trás, encostar as pernas às suas, curvar-se sobre ele, ver o que ele está a ver e perguntar-lhe «porquê?». Levanta-se para partir. Com o movimento súbito atraiu a atenção do rapaz, olham-se agora nos olhos. Quando seria sensato desviar o olhar, entrar em casa, puxar as cortinas, andar, baixar a cabeça, eles mantêm o olhar posto um no outro, como se olharem-se fosse tão compulsório quanto respirar. O homem tem saudades, desde há algum tempo, de como desejava o mundo quando era mais novo, de como a vida lhe abria a porta cerimoniosamente cada dia nascido, de como tudo era tão possível e a vida, traçada por nós, seria o que queríamos que fosse; o rapaz tem sede de crescer, e traçá-la.
O homem senta-se de novo, apoiado na parede. Passados uns segundos, o rapaz desaparece na indefinição do seu quarto e o homem sabe que ele vai descer e falar-lhe. Contudo, ele não o faz. Atraído pelas vozes que se espraiam mais lá à frente na rua, o homem levanta-se e parte, sem olhar para a janela que ficou aberta. Depois de escolher a roupa para vestir, e vesti-la, diz aos pais que vai espairecer um pouco. O rapaz chega cá abaixo, à rua. O homem partira.

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