não tenho qualquer pejo em alterar o que quer que tenha escrito. bem sei que o meu estilo literário (e todos os outros) haverá sempre de mudar mas, em qualquer altura que leia algo que escrevera, risco e reescrevo, nervosamente, tudo o que me não agradar. este texto, no entanto, está intacto. coibi-me de lhe tocar, muito embora já não me reveja em muitas das suas passagens. creio, no entanto, que ele merece uma oportunidade de ser lido. foi levado à cena (adoro esta expressão) em 2004, na peça "Com carácter de urgência" pelo Ultimacto - grupo de teatro da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da UL. aqui está:
"pergunto-te porquê.
pergunto-te o porquê, os tantos porquês que nem um valium dos fortes doma, à noite, noitinha, quando me deito. para começar.
onde ias tu, com tanta pressa, desajeitado, como sempre, naquela quinta-feira, antes do primeiro de novembro? paravas sempre à minha janela, batias uma, duas vezes, e quando eu afastava os cortinados, que sorriso, meu deus... davas-me um beijo, não, dois! um na boca, demorado, saboroso, e outro na testa, como sempre fazias, em sinal de respeito, dizias... tinhas-me muito respeito... lembro-me como me tinha de debruçar para fora da janela para que cumprisses o teu ritual. divertia-me, apesar de tudo, essa devoção tão extremada!
mas, responde-me. onde ias tu? não que estivesse atento ao movimento na rua, à espera que passasses, não! simplesmente reparei, deitado na cama, naquela tua camisola, laranja garrida! ninguém mais poderia usar semelhante coisa! disse-te vezes sem conta que a deitasses fora, que a doasses aos pobres, sei lá! que te desfizesses dela, que era horrível... em vão, é óbvio! não desistias tão facilmente das tuas escolhas, tão teimoso que eras!afastei discretamente os cortinados para que me não visses, não queria que pensasses que te espiava... a janela embaciou-se com a minha respiração, desta vez não a abri, não me deste um beijo... ias com tanta pressa! atravessaste a estrada sem olhar para os lados, aliás, como sempre fazias, por mais que eu te rogasse atenção! desta vez tiveste sorte, não vinha nenhum carro! mas quantas, quantas vezes ias sendo abalroado! nessas alturas saía-me das entranhas um grito tão profundo, gutural, que depois se esbatia numa raiva, naquela raiva... sentia a garganta tão apertada! tu rias-te, gozavas com a minha exasperação, como se fingisses não saber que eras os meus alicerces! as pessoas olhavam muito para nós, eu, vermelho, quase espumando de aflição e tu, rindo-te que nem um perdido... era assim: eu espantava os medos vociferando, tu rias-te. será que ainda és assim?
mas diz. diz lá, onde ias naquela quinta, apressado, orgulhosa e teimosamente envergando aquela camisola laranja intragável, à qual tinhas tanto amor?
uma constante em ti era amar e querer tudo o que os outros (chamavas-lhes, com desdém, os normaizinhos...) repudiavam! aconteceu o mesmo com aquela cadela preta, cega e surda que encontraste, um dia, no Guincho, suja e sozinha. Por mais ultimatos que a tua mãe cuspisse, esganiçada, não abrias mão dela... acho que se tornou o símbolo vivo da tua compaixão. tinhas-lhe um amor tão puro que às vezes, em segredo e afastando logo, logo esse pensamento, desconfiava se gostavas mais dela se de mim! davas-lhe à boca, todos os dias, com um biberão, leite; deixava-la dormir contigo, embora ela se coçasse incessantemente de cada vez que vinha de um dos seus passeios pelas redondezas, passeios esses intermináveis, às vezes durante a noite, noitinha... pois deixa-me que te diga. eu também amava muito aquela cadela, mais que não seja porque cada vez que ela mostrava um breve e tímido sinal de contentamento te abraçavas a mim e me beijavas com força. e de seguida atiravas-me com volúpia um amo-te pleno de realização!
nunca cheguei a fazer uma deplorável cena de ciúmes, daquelas que se vêem nos filmes. não porque não o quisesse mas porque a minha racionalidade me agrilhoava o comportamento. não, isso não é normal, agora fazer uma cena de ciúmes por causa duma cadela! o seu nome era princesa. morreu.
fizeste-lhe um funeral digno de um membro da realeza, repleto de coroas de flores, chamaste todos os teus amigos (que são tantos, meu deus!), a tua família... choraste tanto, amor. e eu! nunca pensei que sentiria tanto a falta da princesa. estranhamente, por vezes, quando dormia contigo, lembrava-me de como ela se intrometia no meio de nós, privando-me do teu calor, da tua pele. odiava que ela me lambesse de manhã, quando acordava! pois até disso tive saudades.
morreu e com ela a prova viva da tua bondade! vacilaste um pouco, sim que eu bem me lembro de como andaste confuso uns tempos, parecia que cambaleavas. embrenhaste-te, então, num projecto de acção social que havia na tua faculdade. sumias noites inteiras para ir dar de comer aos sem-abrigo. eu apreciava esse teu lado humanista, mas de vez em quando almadiçoava-te! desculpa-me, amor. porque fugias para dar de comer aos sem-abrigo? não vias que era eu também um sem-abrigo? precisava de comer, de comer-te e tu fugias. rapidamente a minha racionalidade vinha e carimbava uma sonora censura nestes meus pensamentos desviantes. e quando regressavas e perguntavas se estava magoado, triste, esboçava sempre uma expressão de espanto e balbuciava um politicamente correcto claro que não!
e tu ficavas muito feliz pois eras amado por alguém que sabia e aceitava a tua missão neste mundo! pois é, amor. afinal, eu também sou um normalzinho.
também me queria queixar e queria chorar e babar frases que te fizessem sentir culpado, em falta. mas o meu amor por ti era demasiado forte. ou demasiado fraco, não sei.
sei que um dia de verão, há algum tempo, um dia resplandecente e preguiçoso, me disseste que não me amavas mais, que sentias que não me merecias e que era melhor separarmo-nos. e nesse dia tão claro, tão farto de borboletas e plantinhas e chilreares, nesse 3 de agosto obscuro, algo em mim sucumbiu à força devastadora desse não te amo mais. um dia mais tarde descobri que o que em mim tinha morrido havia sido a racionalidade.
onde ias tu? sim, onde ias?
ouvi dizer que tinhas acabado o teu curso, que estavas a trabalhar numa escola em Lisboa, que ganhavas bem... em meios pequenos só não se sabe o que não se quer saber! custa-me ver que reconstruíste a tua vida, que botaste novos alicerces nas ruínas dos que haviam esmorecido. não foi assim tão fácil comigo. não, não foi.
as ruínas dos meus alicerces eram demasiado espaçosas, demasiado presentes, vigentes. mesmo depois de todo este tempo (três, quatro anos? não sei) continuo vivendo desprotegido, sem paredes que me suportem, que me bloqueiem o vento frio.
de vez em quando sonho, ou penso não sei, como, às vezes, me costumavas receber nu, no teu quarto. punhas um incenso de maresia (o meu preferido) a arder, no canto, em cima da mesa de cabeceira. tinhas a cama feita apenas com um lençol em cima do colchão, como sabias que eu gostava. pegavas em mim ao colo, como se fosse a nossa lua-de-mel. nunca chegámos a tê-la. fazíamos amor como crianças, de uma maneira tão inocente. demorávamos horas explorando o corpo um do outro, que já conhecíamos ao mais ínfimo pormenor, mas que constituía uma novidade de cada vez que o percorríamos com beijos. adoravas o meu umbigo, os meus ombros, o meu pescoço. por mais que eu te implorasse que não me beijasses o pescoço não desistias. sabias que me arrepiava solenemente mas eras teimoso. eu passava momentos intermináveis olhando e beijando o teu peito, a tua barriga, até que não aguentavas mais e te rias. como eu gostava de ouvir o teu riso. não sei porquê fazia-me sempre lembrar a água, um rio, daqueles pequeninos, correndo lesto sobre os seixos. pegavas em mim, sentavas-me em cima de ti, virado para ti, entrelaçados. e penetravas-me, tão suavemente. nunca conheci ninguém tão calmo a fazer amor. parecia que desfrutavas cada centímetro de pele que o teu pénis tocava, dentro de mim. pelo menos eu tinha essa pretensão. às vezes esquecia-me do meu próprio deleite e entretinha-me mirando os teus dedos dos pés, que se contorciam com força de cada vez que tinhas um pico de prazer. a tua pele eriçava-se tanto, apetecia-me morder-te e arrancar-te um bocado. tão bom que era teres-me nos teus braços e dar-te prazer.
e depois. passadas algumas horas, que segundos pareciam, o orgasmo. deliravas quando eu fazia o sacrifício (era assim que pensavas. se soubesses que gostava tanto disso como tu!) de beber o teu esperma! o teu sorriso era tão amplo, tão alvo! chamavas-me o teu perfeito, o teu lindinho, o teu e só teu amor. meu deus, como eu me sentia!
o incenso já ardeu todo. dormimos agora, eu, de costas voltadas para ti, encaixados, como duas peças de puzzle. antes de adormecermos davas-me sempre um beijo nas costas e sussurravas és meu. e eu era teu. ainda sou.
é de noite no meu quarto. as sombras, recortadas na parede branca, passam fugidias na escassez do teu toque. estou só, deitado na cama, olhando para o tecto, com as mãos em cima do peito, como um morto. eu estou morto. resgatam-me para a vida, uma vez por outra, os corpos vazios que me possuem, com uma rapidez estonteante. nojenta. não penses que te traio, amor, de cada vez que fodo alguém. não, o meu pensamento está sempre, constantemente em ti, na tua pele e nos teus olhos. quando olho para eles, vejo apenas o teu sorriso, a tua pequena cicatriz ao lado do olho esquerdo. não vejo mais nada, nem sinto mais nada. mais correcto seria dizer não vejo nada, nem sinto nada. apenas o vazio sufocante da tua ausência.
e nunca, nunca mesmo, engulo o esperma deles. não! a tua essência está cá dentro e nunca, jamais alguém a amputará de mim.
porque fugiste de mim naquele dia? porque me deixaste, sozinho em mar alto, sem bóia nem garganta para gritar? sinto-me estéril quando penso nesse dia, e nos subsequentes. porque a negritude é a mesma, não atenuou a minha dor nem um bocadinho. tão triste que estou.
perdi os meus amigos, nesta amargura obsessiva. não tenho com quem carpir o sofrimento solitário e as lágrimas secas. depois de muito gritarem comigo e me blasfemarem, deixaram-me, entregue à minha sina. inevitável, creio eu; eles dizem que eu escolhi!! achas bem amor? eu não escolhi! porque me disseste aquele não te amo mais? porque não fingiste e me deixaste ser feliz? eu merecia. e tu puxaste-me o tapete. cobardemente. egocêntrico. com essa tara da acção social, e de seres bom para os outros, e da merda da missão que tinhas na terra e da puta da magnificência, acabaste por matar aquele que mais te queria bem, o teu mais devoto ser! sim, que carinho, que recompensa te davam aqueles esquálidos sem-abrigo a quem davas comida, por quem passavas noites sem dormir? eu, que te fazia comida, que te ouvia quando choravas, que tão ternamente te abraçava, que recebi eu? um não te amo mais que me arrancou cada célula do corpo às contíguas e me faz cair no mais profundo dos definhares.
porque me ignoraste? porque nem sequer vieste ver-me à janela, naquela noite abafada, quando gritei bem alto, entre lágrimas sós, o que o meu peito exigia, esse meu peito rasgado em mil pedaços? dormi no átrio do teu prédio, encolhido, engelhado. vieram buscar-me, os amigos que na altura ainda tinha, de manhã. levaram-me de bruços. e toda a gente da rua se condoeu.
gostava de te poder dizer para tomarmos um café, um dia destes. nunca mais falámos, como se não nos conhecêssemos. e, no entanto, como nos conhecemos! falar-me-ias do teu emprego, das crianças, que aposto, adoras!, da tua mãe, que ainda me cumprimenta, com uma ponta insuportável de pena na voz, do teu novo amor... eu não me importava, amor! nem te chamaria de amor, como sempre fazia! seríamos amigos, e eu poderia olhar-te, cheirar uma vez mais a tua pele. não provocaria em ti a mais pequena preocupação, ou aquela execrável pena. eu estou bem agora, estabilizo, a pouco e pouco. e poderia ser o teu ouvinte, ou conselheiro. dir-te-ia o que fazer, nos assuntos do coração, rir-me-ia com a tua alegria e ficaria tão feliz quando amasses e fosses amado! calmamente, em absoluta desintegração interior.
faria tudo por um punhado de palavras tuas. quebrariam elas os meus dias de autómato, em que percorro o caminho de casa ao trabalho, e depois de volta, sem olhar os pássaros que esvoaçam no céu, como fazíamos. sem correr pelo jardim, pelos carreirinhos que contornam o lago, sem contemplar estupefacto a natureza inventiva do mundo. quando me falavas dessas coisas, eu sentia que fazia parte de um mundo tão maravilhoso quanto desconhecido. filosofavas, absorto, e, lá no fundo (sei-o eu), falavas para ti, na inconsciente certeza de que não compreenderia. bastavam-te os meus sorrisos embrutecidos, e o meu carinho, a minha admiração pela tua mente prodigiosa, pelo teu intelecto, que me fazia pensar em coisas tão abstractas. talvez te tenhas fartado desse meu materialismo realista, de responder às tuas questões irrespondíveis com um sorriso e um abraço... seja como for, o meu sorriso, o meu carinho e a minha admiração não bastaram para sempre. eu sabia (quão intimamente!) que precisavas de alguém que te acompanhasse nas tuas aventuras extraterrenas, alguém com uns óculos de massa grossos, cabelo desgrenhado e mãos finas, de pianista. e eu não era assim, e tinha pena de ti por não o ser, por não te poder dar o que merecias, e pena de mim, condolência pela obsidiante consciência de que, um dia, partirias. 3 de agosto.
passaram cinco anos desde aquele 3 de agosto. este que passa, agora, é marcado pelos gritos lancinantes da tua mãe, agarrada a uma amiga, com os joelhos ligeiramente dobrados, como se fosse desfalecer. é marcado por um sol tão mimoso, e tão ignorado na vastidão alva destes leitos. é marcado por um choque terrível na nossa cidadezinha, tão corriqueira. e o que quer que tenha, um dia, sido o nosso amor, átomos ou essências que ainda prevaleçam nos nossos âmagos, descem à terra, comigo e contigo, para sempre."