a mão e o peão.

Saturday, January 27, 2007

a vida e a pele

inspirado em laura brown, de 'as horas' (michael cunningham)

o-que-vai-morrer: eu vi cada ruga do teu rosto nascer, ganhar forma, macerar mais e mais a tua pele indefesa.

o-que-vai-nascer: e viste mais do que isso: viste como os humores, dentro de mim, volviam, rodopiavam, o tufão que se fez deles e o que ele fez de mim!

o-que-vai-morrer: e agora dizes-me que vais à vida, que tens a estrada aberta à tua frente... que vais ser tu, finalmente, noutro sítio onde não te conheçam nem te conheças vícios. e fica quem com eles? eu, agarrado a eles, qual camisa que tenha rompido do teu corpo, com a excitação da tua partida? recuso esse destino, tenho o direito de lutar pelo que acredito, e acredito em ti, em mim, no nós que se vem tornando cada vez mais um eu. não quero que te vás. despedaçar-me-ás.

o-que-vai-nascer: é inevitável. mesmo que fique, parto. mais não posso ficar, não me encontro, não me revejo, não... assisto a uma vida que se desenrola, de fora, represento... posso lá viver assim! tens amado um fantasma todos estes anos... e esse fantasma vai, agora, reencarnar... não me arranques à vida, por favor! sabes que faria tudo por ti, não me peças para abrir mão da vida!

o-que-vai-morrer: quando disseres adeus, vais estar a pegar-me na mão, a fazer-me agarrar numa arma e metê-la na boca. e vais puxar o gatilho.

o-que-vai-nascer: ...eu não quero que morras...

(longo silêncio)

o-que-vai-morrer: renuncio à vida para que tu nasças e para que tenhas a oportunidade de sentir, noutro sítio, o arrebatamento de amar alguém como eu te amei a ti, sem máscaras, real e puramente. não há nada a fazer, mostras a obstinação de uma erva daninha. vai. vai. percorre por ti, e de uma vez, a vagina da mãe-Árvore, ela que te pára, no meio das ervas.

o-que-vai-nascer: não voltarás, do submundo, para vingar a tua vida?

o-que-vai-morrer: qual vida? a que levarás agarrada a ti, como uma segunda pele, que federá sempre?

o-que-vai-nascer: acreditas nisso?

o-que-vai-morrer: sei-o, também eu levei toda esta vida na minha pele a vida de alguém que deixei para trás, também ouvi as súplicas, húmidas, e sei a que fede essa capa inevitável, ao pavor de saber que a felicidade se encontra, muitas vezes, longe dos que nos amam, muito longe, onde as suas vidas não chegam intactas, coladas às suas próprias peles.


2 Comments:

Blogger RIC said...

Um monólogo interior transformado num diálogo de vozes da consciência?
Muito bom! Poético e dramático. E muito intenso!
Obrigado!
:-)

January 28, 2007  
Blogger tiago said...

ric> obrigado a ti :) pelo tempo dispendido e pela nova interpretação.

January 28, 2007  

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