quarto
quando o afecto te enche o peito é quando sabes e sentes, mais pregnantemente, que este mundo de grafemas foi construído por cima do outro, do pulsar emotivo que nos rege. e deixou pontas soltas, como cobertor insuficiente que, à falta de transcrição possível (de uma linguagem na outra) incha, infla e, de novo, se abate. sabes que há coisas que, muito simplesmente (e devemos admiti-lo com humildade), são intransponíveis, intraduzíveis (indizíveis?). e não falo, como apressadamente se julgue, de fraquezas ou ódios que, por vergonha ou esforço de conservação, todos ocultamos; falo, sim, de quando estamos plenos, de quando espasmos de luz nos saem pelos poros, pelos buracos do corpo, de quando tudo o que sentimos é amor, amor por nós e, consequentemente, amor pelos outros, amor pelas coisas. é nestas alturas, sabe-lo bem, que a manta mais infla, mais irradia, mais se expande, naquelas em que o estado de fusão com o belo e o bom são, mesmo, grandes demais. e para esses, de facto, não há palavras.
esporadicamente, acontece isso ao meu quarto - é neste espaço que mais me exponho (a mim próprio e esta é das exposições mais difíceis) e mais me dou. é no meu quarto que teço, em alegres pulos mentais, quase pueris, a rede que se foi construindo, que eu fui construindo, desde que me tenho como gente. é nele que equaciono tudo o que de bom me têm dado aqueles que dela têm vindo (e, às vezes, deixado) a fazer parte. é nele que penso, depois sinto e, finalmente, sei, a sorte, a exuberante sorte, de conhecer quem conheço, de aprender com quem aprendo, de amar quem amo e de ser amado por quem sou. nada disto deverá ser tomado como uma tentativa de demarcação de uma excepção. eu canto a minha sorte. num só sorriso, canto a minha sorte. quando sinto o aperto cálido de um apoio bem simples, canto a minha sorte. quando grito e caio em absoluta confiança, canto a minha sorte. quando me dou e sou recebido, canto a minha sorte. quando o interesse de alguém me envolve e me transcende e me alegra indescritivelmente, eu canto a minha sorte.
vós, cantai a vossa. e cá estarei para a ouvir.
5 Comments:
Fizeste pensar sobre a importância dos refúgios. Falaste do quarto. Não o considero um refúgio. O meu quarto é o último reduto, não o considero um refúgio. Os refúgios foram feitos para fugirmos de nós, exactamente porque nos queremos encontrar. Não é isso que se passa com o meu quarto. Lá estou muito preso a tudo o que sou para me poder reencontrar? Não achas?
Aquele Abraço!
um destes dias ainda vamos por aí cantar os dois: por nós e por todas as qualidades do mundo.
(um beijo, um segredo, um abraço entre quatro paredes)
;)
Com um início meio periclitante (aquele advérbio é no mínimo estranhíssimo), este texto ganhou asas e voou com a perícia e a perfeição do voo das águias.
Gostei muitíssimo!
Obrigado! :-)
ric> espero que tenha melhorado um pouquinho com a correcção ortográfica ao advérbio estranhíssimo ;) abraço e muito obrigado.
Perdão, meu caro! Pensei que fosse intencional... Não pretendia apontar quaisquer «erros»...
Oops...
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