a mão e o peão.

Friday, January 12, 2007

o homem invisível

em frente ao espelho, nada mais se vê do que as minhas lágrimas. brotando de fonte incerta, rolam pelo ar, nas saliências da minha cara, e desaparecem em breves instantes.
o que são os sentimentos para um homem invisível?
não uma invisibilidade de poder, não um dom: eu sou invisível de fraqueza. desde aquela varanda nocturna, tudo o que mais me animava se esfumou, perdido nas mesas dos bares, perdido nos copos vazios, perdido nas pedras do chão e no suor do trabalho.
perdido o que mais me animava.
a certa altura, entre uma esquina e outra, foi-se o meu corpo tornando mais e mais transparente. a princípio, pensei que fosse da minha vista. estava cansado do esforço de provar aos outros que valia alguma coisa. os sinais e os semáforos, via-os desfocados, como luzes numa discoteca surda. e começava já a ver a minha barriga através das minhas mãos. primeiro, foram os dedos.
como se o sangue fosse secando, perdi toda a cor. até que as roupas se seguravam no ar, como por magia.
agora, ando nu, numa terra que não é a minha. ironia das ironias, ando nu numa terra que não é a minha. ironia ainda maior, ninguém me vê.
tento não me esquecer, todas as manhãs, da minha humanidade. perdendo o corpo, a nossa condição humana torna-se frágil como uma folha seca. como uma mãe que tenta, todos os dias, não se esquecer da cara do filho que morreu, eu vou repetindo os sentimentos um a um, memorizando-os a cada manhã.

angústia. vergonha. ansiedade. nojo. dor. medo.
estranhamente, são os positivos os que mais tardam a vir.
prazer. carinho. vontade. liberdade. expectativa. alegria. amor.
como palavras de uma língua estranha, repito-as para não as esquecer. sabendo, no fundo, que já estão perdidas.

o que é o sentimento sem posse? o que é o sentimento, sem casa, sem roupa e sem cara?

há muito que o sentimento é apenas uma lembrança. E também ela se esfumará, um dia.

1 Comments:

Blogger Wayfarer said...

andava aqui a voar pela blogosfera e não resisti em parar e deixar uma marca.

o homem pode viver ou existir. Parece-me que muitas pessoas continuam a preferir a segunda modalidade e "ver passar a vida de longe" (como diria Ricardo Reis). São invísiveis para os outros, escondidos através de um copo, no canto escuro do bar, observando os "vultos" das outras vidas (ou serão mesmo existências?!).

Quando o corpo começa a desaparecer, pelos dedos, pelas mãos, imaginei que isso aconteceria porque elas servem para comunicar, para tocar, para agarrar e agir. O homem torna-se invisivel porque não usa as mãos. E aqui lembrei-me da frase do Professor Pina Prata "Vai-se sendo pessoa num contexto de relações."

gostei muito deste texto. à medida que ia lendo ia-se formando uma imagem na minha cabeça e agora decidi que tenho que "a" fotografar.

Bons escritos ;)

January 18, 2007  

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